Frase é de José Antônio Tobias, que, junto com Algemira Pinheiro de Souza, falam sobre o preconceito racial
O homicídio de George Floyd, um homem negro de 46 anos, em Minnesota, nos Estados Unidos, causou uma onda de indignação depois da divulgação do vídeo que mostra um policial branco usando o joelho para asfixiá-lo, após uma suposta utilização de uma cédula falsificada de 20 dólares para compras em um mercado.
Para abordar a questão do racismo, Gazeta do Rio Pardo convidou os ex-vereadores José Antônio Tobias e Algemira Pinheiro de Souza. Algemira preside o Lar da Infância há 43 anos, mas há 45 está na diretoria. A instituição atende 106 crianças, e no dia 18 de junho, completará 3 meses de inatividade por conta da pandemia. Tobias é químico, trabalhou na Nestlé durante 31 anos e hoje é químico responsável em uma empresa local de produtos de limpeza, além de ser um dos integrantes do grupo Tradisamba desde 1986.
“Acho que o racismo é muito claro e até mesmo pela posição social do negro no Brasil. Essa questão que houve nos EUA, foi apenas um estopim que reflete tudo o que vem acontecendo no mundo. A repercussão está sendo muito grande porque trata-se de uma grande potência. Isso o que aconteceu com o George Floyd, ocorreu em uma época em que o mundo todo está sensível diante da pandemia. Vimos uma posição de repúdio, foi uma situação muito revoltante”, disse Tobias.
“Achei um absurdo quando vi pela televisão um policial em cima do pescoço de uma pessoa, ele dizendo que não aguentava respirar e mesmo assim o policial continuou em cima, só por ser um negro. Não podia acontecer isso, foi muito chocante. Infelizmente isso acontece quase que no mundo inteiro. Quando a polícia chega, se tem um branco e um negro, levam o negro, porque já está marcado”, completou Algemira.
“Acho que não existe um negro que não tenha passado por algum momento de constrangimento. É muito presente no dia a dia, principalmente a partir do momento que temos alguma ascensão, no meio social ou político. O preconceito é um conceito antecipado que as pessoas tem de determinada raça. Por exemplo, quando algumas pessoas veem um negro já ficam com um pé atrás, o que é um comportamento lamentável do ser humano, que ainda tem muito o que aprender nessa terra”, comentou Tobias.
Infâncias difíceis
“Quando criança passei por racismo na escola. Quando iam se referir a mim, falavam ‘aquela negrinha’, às vezes eu até batia nas crianças. Mas isso passou. Fui crescendo, estudando, saí da escola, e fui fazer o ginásio. Na classe, infelizmente, só tinha eu de negra. Qualquer coisa que acontecesse, falavam ‘aquela negra lá’. Depois que me formei isso parou de acontecer. Perdi meu pai cedo, tinha apenas seis anos, e minha mãe sempre falava para eu não ligar para o preconceito. Ela me ensinou a nunca discutir e brigar por isso. Quando fiz faculdade, as pessoas já tinham outra maneira de me enxergar, sempre fui bem recebida pelos professores, pelos alunos, então foi acabando esse preconceito”, explicou Algemira.
“Fiquei órfão de pai, tinha 9 anos. Minha mãe ficou cuidando de cinco filhos. Crescemos com dificuldade, minha mãe era empregada doméstica, minha irmã mais velha tinha 12 anos e ia trabalhar também. Foi uma infância bastante difícil. A pior fase na escola pra mim era o dia 13 de maio, que os professores faziam questão de salientar a importância da princesa Isabel para a libertação dos negros. Eram vitimizados, dava a impressão que chegaram aqui como intrusos, passaram por tudo o que passaram, mas graças a princesa Isabel foram libertados. Quando se discutia isso na escola, nos sentíamos muito pequenos. A medida que fui crescendo, estudando um pouco mais, vi a necessidade de contar a história de uma forma verdadeira, mostrar a contribuição do negro, que ele não veio para cá porque quis, veio escravizado, passou por momentos dificílimos”, relatou Tobias.
“Minha família foi para São Paulo e eu fiquei em São José, com a minha avó, que na época já era uma pessoa de certa idade e me contava coisas que a família dela viveu no período da escravidão. Minha avó nos via como pessoas inferiores, achava que a nossa presença em alguns lugares ofendia as pessoas. Ela morreu com 106 anos, aprendi muito com ela, mas tinha que conviver com isso, com a situação que ela colocava. Se eu chegasse em casa com um amigo branco, ela perguntava se ele não tinha vergonha de andar comigo, que era negro. Ela cresceu com aquilo, não tinha culpa, era algo enraizado”, relembrou Tobias.
Conquistas na fase adulta
“Por causa da minha religião, conheci o missionário Klaas Vanhar, que era holandês e estava trabalhando no Lar da Infância, que na época era internato. Por conta da igreja tínhamos contato, eu participava das reuniões, mas sem fazer parte da diretoria ainda. Depois ele começou a perguntar se eu queria fazer parte da diretoria. Veio mais uma holandesa, Femie, e começou a me convidar para trabalhar. Eu estava me formando na faculdade, e comecei a ver que as pessoas precisavam de mim ali. Eu trabalhava em um escritório, e esse contato que eu tive com os holandeses fez com que eu começasse a trabalhar no Lar da Infância. O Klaas foi embora, e fiquei trabalhando com a Femie e a Neltje. Em 1973 comecei a fazer parte da diretoria. Mas nunca sofri preconceito por eles. Nunca me trataram mal. Eu era tesoureira e me elegeram para presidente da entidade. Já visitei a Holanda três vezes, fazendo palestras em igrejas e escolas, apresentando meu trabalho aqui. Sempre fui bem recebida”, afirmou Algemira.
“Uma vez eu fui em uma escola, um menino me abraçou, me cumprimentou, e começou a passar a mão no meu braço, e olhava para a mão dele. A mãe dele disse para ele não fazer aquilo, mas eu disse que não tinha problema. Lá na Holanda, o bispo se vestia de Papai Noel, levava presente para as crianças, e seus ajudantes eram pintados de negro. O menino pensou que eu era uma daquelas pessoas, dos ajudantes. Foi muito interessante. Até hoje tenho contato com holandeses, e duas sobrinhas casadas com holandeses”, completou.
“Quando entrei na Nestlé passei no concurso, na época era assim que escolhiam os colaboradores. Antes disso eu já trabalhava em um laboratório do hospital. Fiz contabilidade, e depois que entrei na Nestlé fiz faculdade de Ciências Físicas e Biológicas, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FEUC). A minha turma foi a primeira a se formar em Ciências Físicas e Biológicas, éramos um grupo de 75 alunos, com apenas dois negros. Esse meu amigo que também era negro tinha um complexo terrível. Fiz três anos de faculdade em São José, depois fui fazer a complementação em química em Guaxupé. Lá era uma turma de 50 alunos, só eu de negro”, contou Tobias.
“Fiz o trabalho no Tradisamba, sempre pensava que precisava buscar uma forma de mostrar que fazemos as coisas organizadas, mostrar nossa cultura. Na década de 90 criamos um grupo chamado Acrunep ( Associação Cultural Recreativa dos Negros Riopardenses), a função desse grupo era estudar mais, nos aprofundar na história do negro desde o início”, continuou Tobias.
Sonhando com igualdade
“Quando eu comecei a estudar, algumas pessoas falavam para eu não gastar com isso, porque nunca ia vencer na vida. Eu tinha fé em Deus que ia vencer sim. Fui a primeira vereadora negra mulher em São José, nunca fui maltratada pelos meus colegas na Câmara. Eu creio que um dia as pessoas vão começar a entender, essa juventude que está vindo agora vai começar a entender mais”, previu Algemira.
“Não sei se estaremos vivos para ver, mas acho, sim, que um dia o racismo irá amenizar. Precisamos da escola para a desconstrução do racismo, para que as pessoas saibam a verdadeira história. Vejo a necessidade disso na educação infantil. Ninguém nasce racista, as pessoas aprendem a ser racistas, grande parte vem da família, do exemplo dos pais. Implantando isso na escola, é uma semente”, sugeriu Tobias. “Na fase adulta, precisamos que não existam apenas as pessoas que não são racistas, mas os antirracistas. Começando pelas piadinhas, que tudo o que envolve negro é ruim. É uma série de coisas que nos magoa, mas que infelizmente faz parte da cultura brasileira”.