“Minha mãe alisava meu cabelo para me proteger”, conta historiadora rio-pardense
Considerada uma data de relevância na história do país, o dia 13 de maio de 1888 foi marcado pela assinatura da Lei Áurea, com o objetivo de abolir o regime de escravidão aos imigrantes trazidos da África. Mas a Lei Áurea, para libertação dos cativos, não resolveu o problema social. Embora livres, a maioria não tinha para onde ir e nem como sobreviver, já que não foram oferecidas condições ou oportunidades para a inserção dos ex-escravos no novo formato de trabalho. A falta de ações do governo e da sociedade da época, refletem nos dias atuais.
Após 133 anos, o Brasil ainda carrega o peso daquele passado. A latente desigualdade em direitos e oportunidades, o racismo estrutural são assuntos na pauta dos movimentos que lutam por mais reconhecimento e respeito para a população negra.
Na última quarta-feira, 13 de maio, a Rádio Difusora entrevistou os professores, pesquisadores e mestres em história Marcos De Martini e Suelen Girotte do Prado, que falaram sobre a luta antirracista no município.
Apesar da grande contribuição para a sociedade como um todo, em São José do Rio Pardo os registros referentes a identidade negra são escassos. Nos livros publicados pelo professor Rodolpho José Del Guerra, são citadas algumas associações do movimento negro, mas em pequena escala. Entre os séculos XIX e XX, eram raríssimas as menções a uma personalidade negra em jornais, por exemplo.
Fundação da cidade
São José do Rio Pardo foi fundada em 1865, data em que a mão de obra escrava ainda existia. Marco contou um pouco da história desde o princípio. “Apesar da cidade ter recebido sua primeira documentação em 1865, por conta da reunião para decidir sobre a construção da capela, desde as primeiras décadas do século XIX, já havia ocupação em nossa região. Há registro do capitão Luís de Mello, que é nome de rua em São José, inclusive. Ele já estava na cidade desde 1815. Provavelmente, como para todo proprietário de terras, havia a presença de escravos. Os primeiros fazendeiros de São José, que compraram e ocuparam terras aqui, a grande maioria era proveniente de Minas Gerais. Trabalhavam na mineração, e depois começaram a vir para a região de São Paulo no começo do século XIX. Tudo indica que comprando as terras aqui, traziam seus bens, e também a mão de obra escrava, que era comum na época. Não temos indícios da quantidade de escravos, porque como era uma região que estava sendo desbravada ainda, talvez não houvesse uma quantidade tão grande”, contou.
A grande atividade econômica da época no Brasil, era a cafeicultura, que demandava grande mão de obra escrava durante o período.
Marco falou sobre a Lei “Eusébio de Queirós”, contra o tráfico de escravos, implantada em 1850. “Tinha toda uma legislação que pretendia colocar fim no trabalho escravo. Pós independência do Brasil, havia uma pressão muito grande da Inglaterra para acabar com o tráfico, para que não entrassem novos escravos. Em 1850 foi proibido o tráfico de escravos no Brasil. De 1850 até 1888 foram 38 anos ainda com a presença da escravidão. Muitos acreditavam que bastava deixar o tráfico e a escravidão logo acabaria, mas foram surgindo medidas paliativas, como a Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários, que foram tentando diminuir a presença da mão de obra escrava”, relatou.
Negros dispensados, imigrantes contratados
De Martini recordou que no ano de 1888, São José do Rio Pardo já possuía uma estrada de ferro. “A cidade já apresentava sinais de um crescimento maior, e com a chegada da estrada, facilitou muito a vinda de imigrantes para cá. Era um novo momento da história econômica e social do Brasil, essa preferência por receber imigrantes europeus, principalmente italianos para trabalharem nas lavouras de café, era uma tendência. No dia 14 de maio (1888), provavelmente aconteceu em São José como em todo Brasil, os escravos foram dispensados, mandados embora. Era mais fácil para o fazendeiro de café manter uma mão de obra imigrante assalariada, do que manter a escrava. Com isso, eles foram dispensados e acabaram indo buscar em outros lugares sua sobrevivência. A Lei Áurea era direta e reta, não fazia menção ao o que o governo poderia dar a essa pessoa que até o dia 13 ainda era escrava”, pontuou.
Embranquecimento cultural
A rio-pardense, Suelen do Prado mora em São Paulo, onde é professora, mestra em História Social e pesquisadora. Recentemente, passou a integrar o Instituto Geledés – Instituto da Mulher Negra, na capital paulista. Ela falou sobre sua infância e adolescência e os desafios enfrentados por conta da cor da pele.
“Sou fruto de um casamento inter-racial. Mas tenho uma ligação muito forte com a família do meu pai. Não me recordo muito de ter referências culturais, ou mesmo de representatividade em São José. Acredito que por muitos fatores, principalmente pela cidade ser menor, as questões ficam bem latentes dentro do microcosmos que é São José. Foi a parte da minha história em que tive que embranquecer um pouquinho para caber em alguns lugares. Na maioria dos espaços que eu estava, sempre fui a única menina negra, então tem todo um processo que ao meu ver, individualmente falando, ainda está em construção”, relembrou.
“Por outro lado, tenho a referência do meu avô que foi um professor no município, se formou depois de se tornar muito mais velho, e era um homem negro que teve até uma parte de sua história recuperada no livro do senhor Rodolpho José Del Guerra, que foi onde comecei a conhecer um pouco da história de minha família. O restante são memórias contadas pelo meu pai, pelos meus tios, em relação as vivências negras nos espaços da cidade”, prosseguiu.
Ela falou ainda sobre a importância da Educação no processo de se integrar à própria história. “Eu vejo que nessa trajetória, eu até perdi a amizade de pessoas, por conta de alcançar esse lugar de identidade negra, e me distanciar do que muitas vezes aparece como uma certa passividade, de irmos aceitando determinados lugares. É muito séria essa questão de política de embranquecimento que foi imposta em nossa sociedade. Foi algo provocado, algo decidido, que em certo momento para a modernização do país, precisava embranquecer”.
“Para mim foi um processo difícil, quando eu tinha 12 anos minha mãe começou a alisar meu cabelo, e quando eu perguntei o motivo, ela disse que era para eu não sofrer na escola, o que faz todo sentido. Faz uns cinco anos que comecei a usar meu cabelo natural e entendi que está tudo bem. Parecem coisas tão pequenas, mas que para mim hoje, com 38 anos, foi um processo lento e bastante caro”, revelou.
A professora explicou que não pode excluir sua vivência na infância, nem mesmo a falta de referências negras, pois os acontecimentos fazem parte de um processo histórico, que é chamado de embranquecimento da população. “Em um certo momento de nossa história, não era legal ter negros no Brasil. Com isso surgiram muitas das nomenclaturas que temos hoje, que provocam um monte de problemas, como mulato, pardo. Porque foi nesse processo que as pessoas tentavam amenizar as coisas, já que ser negro não era legal, nunca foi, já que a condição de ser escravizado não era boa, era desumanizante”, completou.
História dos negros na educação
“Gosto sempre de pontuar, que não estou procurando culpados pelo o meu passado, mas é reconhecer que essas questões existiram e ainda existem. Hoje sou professora, e é muito importante essa experiência que eu tive dentro da escola, para que mesmo como professora e mulher negra eu não repita determinadas coisas. É uma preocupação muito grande que eu tenho, por exemplo, quando chego no conteúdo relacionado a escravização de corpos negros, penso em como vou tratar isso, porque nas aulas de história quando isso era retratado, eu lembro que eu era uma das únicas negras, então eu queria sumir da cadeira, aquilo era horrível, porque parecia que estavam falando comigo, quando na verdade estavam falando de um processo dos meus ancestrais”, lembrou.
“Hoje em dia, nós historiadores temos uma bagagem, essas histórias precisam ser recontadas, essas narrativas precisam ser viabilizadas, precisam ganhar outro foco. O movimento negro não é algo recente, do século XXI, é anterior a isso. É que agora, por conta do movimento da mídia, das redes sociais, por conta de denúncias que são feitas a respeito da negritude que paga com a própria vida, tanto dentro quanto fora do Brasil, isso tem uma potência muito grande”, completou.
Marco também citou durante a entrevista a importância da história dos negros serem ensinadas nas escolas. “Quanto a educação, essa presença obrigatória por lei, vai surgir pela BCC (Base Nacional Comum Curricular), ela vai exigir que o ensino fale sobre os indígenas, sobre os povos africanos, como partes integrantes fundamentais de nossa história. Até então cabia muito ao professor falar ou não sobre a história dos negros, era algo ocidentalizado. Sabíamos muito do Egito, apesar de ser África, mas ouvíamos a história dos faraós, não falavam da cultura indígena e africana, que são tão importantes para o Brasil. É de extrema importância que a criança e o jovem negro, tenham exemplos, e percebam que sua cultura produz muitos personagens valiosos. É preciso mostrar, pois o negro produziu muito na história do Brasil. Temos grandes nomes do movimento negro do século XIX, como Luís Gama, grande advogado autodidata, que batalhou pela libertação dos escravos, sendo negro, vendido pelo próprio pai como escravo. André Rebouças, engenheiro e abolicionista cuja uma avenida importante em São Paulo leva seu nome. Temos que trazer, valorizar e mostrar que ao lado do italiano, do espanhol, do português e de outros que formaram nossa sociedade rio-pardense, tem o negro presente”, constatou.
Poucos registros
Para Demartini, a falta de registros históricos de negros em São José, é uma exclusão pensada, no sentido de não dar voz, não dar espaço a isso. “O professor Rodolpho encontrou alguns registros em jornais, grêmios e associações. Faltou em algum momento ou talvez das próprias pessoas, essa organização. Certamente houve o movimento negro no passado, ele existiu aqui na cidade, mas não teve projeção a ponto de interferir na construção da história da cidade. É um movimento de dificuldade e aceitação desse momento”.
“Com a presença cada vez maior da imigração europeia, que chegou atraída pelas lavouras de café, a presença do negro escravo, que foi liberto a partir de 1888 foi ficando relegada. Há uma política pensada, não é uma coisa aleatória, essa preferência pelo embranquecimento da sociedade brasileira, era uma tendência do século XIX. Então teve a escolha do imigrante Europeu para que ele cumprisse o papel não só de trabalhador, mas também socialmente. Com isso, a população negra foi excluída, marginalizada”, informou Marco.
Tanto nas metrópoles quanto em cidades do interior, os negros ficavam na periferia. “À margem do trabalho, da moradia, foi construir sua vida onde tinham acesso. Eles sempre estiveram presentes, mas foram excluídos, não eram vistos historicamente”, lamenta o professor.
Poucos e limitados são os registros na história de São José do Rio Pardo no que diz respeito a movimentos negros. “Tivemos aqui instituições de clubes que eram mantidas pela população negra, pela cultura negra em nossa cidade. Mas infelizmente acabaram se desfazendo com o tempo, não houve uma continuidade. Em 2019 ressurgiu o Moricab (Movimento Rio-pardense da Cultura Afro- brasileira), que tenta resgatar, dar uma vida nova a essa população, principalmente aos jovens para que se encontrem, se olhem. Valorizar essa cultura é muito importante. É impossível falar sobre a história do Brasil, sobre a cultura brasileira, sem falar da cultura negra”, afirmou De Martini.
Falta de movimentos
Suelen comenta sobre o possível motivo pelo qual alguns dos movimentos negros criados em São José do Rio Pardo possam ter sido desmanchados. “É muito difícil mensurar o porquê isso acontece. Mas na vida prática, é muito difícil nos mantermos em determinados espaços. A vida demanda um monte de questões, e muitas vezes para a comunidade negra em geral, elas chegam aos montes. Fomos excluídos desde a abolição da escravatura, e para onde fomos? Buscar lugares de alfabetização, mercado de trabalho. Somos 54% da população brasileira hoje, mas mesmo assim não ocupamos lugares de poder ou que nos beneficiem de uma maneira geral a ponto de dar continuidade para nossas próprias lutas. Para nos mantermos atuantes em um movimento, precisamos de respaldo, seja ele social, político ou financeiro. Precisamos travar muitas lutas, e às vezes acabamos perdendo a força, energia e vontade. Muitas pessoas não ouvem, não querem saber sobre o assunto, nas redes sociais, por exemplo, qualquer coisa as pessoas julgam como mimimi”, lamentou.
Para ela, São José ainda possui “marcadores que embranquecem”. “É preciso ter uma representatividade e uma referência muito forte para conseguir ter o próprio cabelo, para nos identificarmos como negros, para nos mantermos em movimento. Eu não tive isso. Fui ter quando comecei a ter contato com minha tia que mora em São Paulo e ia sempre para São José”.
Suelen reiterou que para manter um movimento, é preciso muitos recursos, inclusive políticos. “Hoje me pergunto porque eu sempre fui a única negra na maior parte dos locais, a família do meu pai teve algumas vantagens. Meu avô construiu uma casa no centro da cidade, então sempre estive em espaço que não tinham muitos negros. Porque a história dos negros é de segregação, de expulsar os grupos que são minorizados na sociedade até hoje para periferias, acredito que o mesmo aconteça em São José. Para engajar o movimento, precisamos de recursos. Ao meu ver, pela minha experiência individual, São José faz questão de excluir a representatividade negra. Em cidades menores, por algum motivo que não consigo identificar de fato, as possibilidades são muito limitadas”.
“Hoje atuo no Instituto da Mulher Negra, que na verdade é uma ONG, mas se formou porque tiveram várias mulheres em uma luta anterior, engajadas em uma militância feminista, negra, por direitos sociais, mas que em algum momento precisaram de recursos financeiros para existir. Os movimentos não surgem apenas da ideologia, eles precisam ter uma referência política, e necessariamente ter recursos”, explicou.
Suelen contou que quando viaja para São José do Rio Pardo, se surpreende ao ver vários jovens negros com black power. “Na época da minha adolescência era inimaginável. Nunca imaginei usar um black power em São José, hoje em dia para mim é tranquilo. Aqui em São Paulo você é só mais um na multidão, em São José isso sempre foi muito pesado. Quando eu era adolescente eu queria ser igual as outras, queria pertencer ao meio que eu vivia. Hoje quando caminho pelas ruas da cidade, vejo muitas pessoas negras com seus cabelos naturais, isso já diz muito, é um posicionamento”, concluiu.