As amargas lições do desastre de Brumadinho
O espaço para o Editorial desta semana é ocupado pelo artigo, mais do que oportuno, do jornalista, consultor político e professor titular da USP, Gaudêncio Torquato. O texto, a seguir, é dele.
Abro a coluna com Minas Gerais vista pelo grande poeta Carlos Drummond de Andrade.
Em 1984, publicou no jornal Cometa Itabirano o poema “Lira Itabirana”. O poema faz uma denúncia que, passados todos estes anos, permanece atual. Drummond já descrevia o conflito entre a mineradora e a vida do Rio Doce.
“O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
A dívida interna
A dívida externa
A dívida eterna
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?”
A poesia de Drummond foi, é e continuará sendo um grito pela salvação do ex-bucólico Estado de Minas Gerais.
O vale da morte
Tudo (ou quase) o que se disser aqui sobre uma das maiores tragédias ocorridas no país já foi objeto de comentários, análises ou mesmo locuções e interlocuções de desespero e desabafo. Portanto, traço essas linhas com a convicção de que não serei original. Apenas um a mais na soma das expressões que jorram de leigos e especialistas na análise da tragédia de Brumadinho. Começo com um título de jornal que considero apropriado para resumir o monumental acidente: O Vale da Morte. A Vale, que por anos a fio desfilou no ranking das empresas mais fortes e admiradas do Brasil, faz jus à manchete jornalística.
A lama, nunca mais?
O presidente da Vale, Fábio Schvartsman, que passou a dirigir o conglomerado após a tragédia de Mariana, até produziu o slogan que iria pavimentar seu caminho: “Mariana nunca mais”. O mar de lama se repetiu, agora puxando uma fila bem maior de mortos. Óbvia conclusão: a gestão de risco foi subavaliada. O presidente Fábio foi pego por visão errática, excesso de otimismo ou simplesmente pela banalização de promessas que costumam embasar perorações grandiloquentes de gestores em início de suas administrações. A lama correu forte do empreendimento que estava simplesmente desativado. A atividade mineradora ali se fazia a seco.
Estado mais presente
Tragédias como essa de Brumadinho são previsíveis em um território que ainda faz aflorar sementes de barbárie. As lindas montanhas de Minas Gerais, um espaço rico de minérios, têm sido cortadas e recortadas pela lâmina da ganância, que devasta o meio ambiente, desnatura paisagens, carrega para longe as riquezas e planta nos vazios profundos raízes de miséria. No ciclo de chuvas, as tragédias são crônicas anunciadas de desolação e morte. Na região serrana do Rio de Janeiro, não é o que se presencia quando os temporais fazem desabar serras e morros? E por que isso ocorre? Pela ausência do Estado, que falha na prevenção. Que falha no controle. Que é leniente com as ambições desmesuradas dos conglomerados. Que zomba daqueles que enxergam a natureza assolada pela invasão da barbárie.
O facilitador
Aos fatos. O secretário de Meio Ambiente de Minas Gerais, Germano Luiz Gomes Vieira, assinou em dezembro de 2017 norma que alterou os critérios de risco de algumas barragens, o que permitiu a redução das etapas de licenciamento ambiental no Estado. A medida possibilitou à Vale acelerar o licenciamento para alterações na barragem da mina de Córrego do Feijão, que produziu a tragédia de Brumadinho. A norma permite rebaixar o potencial de risco das barragens.
Zema explica?
Apesar de ter sido nomeado pelo ex-governador petista Fernando Pimentel, Vieira foi o único secretário a se manter no cargo desde a posse de Romeu Zema (Novo). A manutenção no cargo foi celebrada por representantes da indústria pelo fato de Vieira ter dado mais agilidade ao processo de licenciamento ambiental.
Acidente ou crime?
Aos fatos. Quarenta milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minério de ferro soterraram o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, em Minas Gerais, e percorreram quilômetros até o mar. A tragédia, em novembro de 2015, matou 19 pessoas, contaminou o Rio Doce, mudando a vida de 500 mil habitantes das mais de 40 cidades mineiras e capixabas atingidas pelo vazamento no até então maior desastre ambiental da história do país. Dona da barragem, a Samarco e suas controladoras – a Vale e a BHP Billiton – trataram o rompimento como acidente. O Ministério Público, como crime.
68 multas, uma sendo paga
Aos fatos. Três anos depois, ninguém foi preso. O processo envolve executivos da Samarco, Vale e BHP Billiton e tramita na vara Federal de Ponte Nova, ainda sem data para julgamento. Das 68 multas aplicadas por órgãos ambientais, apenas uma está sendo paga (em 59 parcelas). O impacto ambiental permanece, com a contaminação do Rio Doce. Embora tenham obtido na Justiça estadual benefícios como o aluguel de residência, auxílio financeiro mensal e assessoria técnica para começar a refazer a vida, as vítimas ainda lutam por indenização.
O pano de fundo
No momento em que a imprensa do Brasil e do Exterior discute a responsabilidade da Vale, dos governos estadual e Federal e de políticos em mais essa tragédia de Brumadinho, convém lembrar a leniência da Justiça, a brandura das leis e os lentos corredores do Judiciário. A essa camada, são acrescidos ingredientes como corrupção, incompetência, ganância e safadeza política. A contagem de mortos e feridos acaba não passando de mais uma estatística da barbárie.
Endurecimento x amaciamento
Projeto de endurecimento na área de concessões para exploração de minério está abandonado no Senado. Nos últimos tempos, o discurso que se apregoava era de amaciamento da legislação sob o argumento da desburocratização. E agora, será que a tese da flexibilização continua a prevalecer? Cautela, autoridades. O Parlamento deverá se manifestar em fevereiro.
Providências
A prisão de engenheiros e funcionários da Vale sinaliza responsabilização pelo desastre de Brumadinho. É algo a se aplaudir. Veremos se a esfera criminal chegará ao cerne do problema, identificando outros protagonistas.
A sombra da insensatez
O novo governo está prestes a completar um mês de vida. Este consultor não perdeu as esperanças de ver o país destravando amarras que o ligam ao passado, mas confessa que teme as investidas que se anunciam em algumas frentes. Nas relações com o mundo, a visão que se prega é a de fechamento, não de abertura. Trocar o multilateralismo pelo unilateralismo é regredir. É buscar o isolamento do país. Nas relações internas, há se ter cuidado com a articulação com o Congresso Nacional, cujos integrantes devem ser parceiros e copartícipes das ações governamentais. O governo errará se agir com particularismos e visão estreita. E se não trouxer o corpo legislativo para o debate nacional. É na esfera parlamentar que o país é passado a limpo. O bom senso deve ser a régua da governabilidade.
Tamanho adequado
O Estado brasileiro tem de ganhar musculatura para promover o autodesenvolvimento do território. Significa modelar sua estrutura, fundir áreas e setores usando a engrenagem da racionalização, privatizar áreas que dispensam a sombra do Estado, sem exageros. Urge dar ao Estado o tamanho adequado, nem nanico nem paquidérmico. Significa atender as demandas sociais, mas sem concessões que possam romper a harmonia e o equilíbrio entre o Estado e a sociedade. Desburocratizar, sim, mas de forma condizente com as regiões e o meio ambiente. Flexibilizar as concessões ambientais sob o argumento de simplificação e desburocratização é falácia.
Os três Poderes
A era Bolsonaro se inicia sob a impressão de que a Tríade dos Poderes está capenga. Observa-se evidente descompasso/desarmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Este último tem assumido funções que extrapolam sua competência constitucional. O Executivo e o Legislativo passaram por momentos de alta tensão nos últimos tempos. Carecem maior entrosamento. Vamos acompanhar as tarefas do ministro Sérgio Moro, da Justiça, ele mesmo podendo se transformar em fiador de tempos de harmonia entre os Poderes.
Minas Gerais
Fecho a coluna com um tributo a Minas Gerais. Pela beleza de um trecho da descrição de seu grande filho, João Guimarães Rosa, o celebrado autor de “Grande Sertão: Veredas”.
SOS: Rasgando a Serra da Piedade
A mineração está cortando também a Serra da Piedade aos pedaços. É uma das mais lindas a compor o horizonte que ainda chamam de belo, patrimônio da Humanidade enriquecido por obras de Aleijadinho. Patrimônio? Alguém respeita? Pois está virando minério de exportação ou simples rejeito em uma barragem que poderá romper e ocasionar mais um desastre.
Tenham piedade.