Sinto muito
Já havia essa tristezinha em 1973. Essa indefinível coisa faltando, que se escondia, sorrateira, entre os sorrisos, aguardando um acontecimento para dar o bote. Uma música, uma saudade, um quase nada valia como centelha, e me fazia recolher ao quarto ou a um canto do pomar para que ninguém percebesse. Cedo estranhei o sentimento, que nos outros meninos parecia não existir.
Com a alegria foi o contrário. Logo se manifestou, numa infância de bola, árvore, barro e cavalo. Antes, ela não era novidade: parecia estar sempre ali, um estado permanente, quase passava despercebida. Hoje, ela desponta de quando em quando, porém com a vantagem de ser evidente. A alegria, antes cotidiana, virou meta e lampejo.
Dizem ser o nojo um sentimento. Acho exagero. Para mim, é apenas uma reação, torção na boca que não merece essa classificação. E mais tempo não percamos.
Essa timidez, de onde veio? A vergonha, por que sempre me foi tão difícil dizer? O que acionava a trava, o recuo? Que julgamento eu tentava evitar? Com a idade fui me desavergonhando, a vida pediu assim. Como num teatro, estar no palco exigiu de mim me expor, me abrir, quase me revelar. E o melhor: alguns doidos na plateia começaram a gostar do enredo. Ouvi até algumas palmas.
Já o medo, foi mudando ao longo do tempo. Antes, era de escuro, de assombração, de bicho que picava, de prova na escola. Aos poucos, foi se sofisticando: passou a ser da rejeição, do pesadelo que dava pontada. Até que veio o maior deles: o de perder alguém querido. Este, nunca passou. Deu as mãos ao sentimento de abandono, e só fez crescer cada vez que se realizava.
A raiva, era mais no começo. Quando fui apresentado às injustiças e tão pouco poder fazer. De raiva dei soco, chutei pedra, quebrei louça, adiei o sono. Hoje, minha raiva maior é de egoísmo, de que me apressem, e de me deparar com as certezas erradas e orgulhosas da própria ignorância. Mas há hoje tanta raiva no ar, incontrolável, inexplicável, que a minha não tem mais importância.
Tive inveja? Sempre foi tão pequena, merece apenas esse parágrafo desnecessário.
Saudades sempre tive, desde que abri os olhos. Conversei muito sobre ela com as estrelas. Percebi que suspirar esvazia a saudade. Senti-la sempre me pareceu um bom sinal: se a gente sente saudade, quer dizer que foi bom. Ou seja: o negócio é seguir em frente, inventando as emoções que viram saudades, e assim sucessivamente. Por exemplo, nesse exato instante, me deu uma saudade danada do pastel que tia Cidinha fazia. Não vou morrer por causa disso, mas posso viver por causa disso.
O orgulho, se antes era das coisas mais bestas – fazer o gol, receber elogio, atirar a pedra com destreza para que quicasse seis vezes antes de mergulhar no açude – virou um grande, enorme dos filhos, dos amigos de quarenta anos, da tranquilidade, de parecer um bom sujeito e de conseguir me exprimir juntando letrinhas.
No meio de todos os sentimentos, uma estranha confiança de que tudo daria certo, que me permitiu pisar com certeza, aliviar o peso nos ombros, e prestar atenção nos poucos, nas águas e nos outros.
Beatriz me trouxe o sentimento que sossegou todos os outros. E a paz, seria um sentimento?
E qual deles me aguarda virando a esquina?