terça-feira , 1 abril 2025
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Pedaços colados

Pedaços colados

Dizem que para os lados de Mongaguá há um especialista em juntar cacos. Aqueles que, em algum momento da vida, a gente sabe que se partiram. Algo os quebrou: uma ilusão desfeita, o equívoco, um pouco caso. Um pedaço ficou na mesa de um bar vagabundo; outro, numa mensagem no celular; outro ainda, num encontro inesperado, desses que a vida se diverte em maquinar e disfarçar de coincidência.
Não é fácil agendar hora. Não que ele viva sobrecarregado de trabalho: é que larga qualquer coisa por uma sinuquinha. Primeiro, marca-se uma consulta com o assistente do sujeito. Se este detectar só alguma rachadura, uma fissura sem importância, o paciente é dispensado, com a recomendação de ir ao circo, viajar para a serra da Capivara ou ouvir por 17 minutos qualquer coisa dos Novos Baianos.
Nos casos graves, imprescindível é a consulta com o especialista. Sem usar cola, agulha ou linha, ele junta o que parecia esmigalhado e que a gente costuma piorar com gim, Philip Glass e pouca luz. O tratamento requer paciência, evitar o consumo abusivo de mexerica (não me perguntem por quê), e as recaídas estão previstas. Durante a recuperação, será preciso algum exercício e desfazer-se de alguns retratos.
Partes refeitas, o cidadão volta à vida com uma disposição de cachorro novo, saltando poças e abanando o rabo para o(a) primeiro(a) que aparecer. Dizem que houve um caso em que a moça, curada, descobriu uma paixão por restaurar canoas. Outro, em se deixar ficar em feiras livres, em frente à barraca de peixes, compondo canções que ornassem com os bordões gritados pelos feirantes. Triste foi o caso de uma despedaçada que se apaixonou pelo especialista, o que só complicou o caso. A ressonância detectou um pedaço do ventrículo esquerdo vagando pelo pâncreas. O tratamento levou sete anos.
Uma vantagem é que o especialista aceita pagamento em brinquedos antigos (prefere os de corda), selos alucinógenos e chás estranhos. Sempre há quem o critique por isso, mas ele dá de ombros: sabe que a vida requer algumas escapadas. No mais, sempre prescreve que não nos metamos na vida alheia.
Pois é, não tenho o telefone do consultório. Nem mesmo sei se há um consultório. Algum paciente disse algo sobre a sombra de uma quaresmeira. Prefiro acreditar naquela senhora que disse que as consultas se davam em longas caminhadas pela beira do mar, os dois chapinhando a água do raso e provocando os siris nas tocas.
Graves mesmo são os casos como o meu, dos que não se interessam pela cura: estão bem assim, convivendo com suas rachaduras, têm até um certo orgulho de exibi-las aos amigos. Elas melhoram a percepção de certas músicas e livros. Trazem uma lembrança doce, um leve arrependimento. Às vezes, inspiram uma crônica boba como esta. E nos dão a certeza de que, sem elas, não vale a pena viver nem mil anos.

Imagem: Pexels/Felipe Kirejian

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