Ele afirma que os demais familiares evitam mencionar a ancestralidade por conta do preconceito
Por Gilmar Ishikawa
Ele não pinta o rosto, não usa cocar, não atira flechas, apesar disso, vive da terra, moldando e produzindo tijolos. Quase sufocado pela cidade, num canto em que ainda é o seu refúgio, ali vive, talvez, aquele que seja o último índio de São José do Rio Pardo.
Conforme registrado pelo professor e historiador Rodolpho José Del Guerra: “É possível que os índios Caiapós e Catuás tenham coabitado em nossa região, não em grande número pela escassez de caça, segundo um relato ao governador (1765), feito pelo capitão Inácio da Silva Costa, primeiro comandante do Descoberto do Rio Pardo”. E se o número de índios não foi grande nos primórdios, ele segue menor ainda nos dias atuais.
“Minha avó era índia. Índia mesmo. Dizia que foi pega no laço. Mas na minha família, o único que assume que é indígena sou eu. Os outros, talvez por conta do preconceito, nunca gostaram de dizer que são descendentes de índios”. Ele diz não saber exatamente qual era a etnia da avó: “Essas coisas a gente não conhecia, porque não se comentava. Eu ainda aprendi muito porque era curioso, gostava de perguntar à minha avó, minha mãe. Alguns da família nunca gostaram de ser considerados índios”.
Na tarde de quinta-feira (18), quase anoitecendo, foi assim que João Carlos Moreira Lourenço começou a contar parte de sua história para essa reportagem. Ele não sabre com precisão, mas acredita que a avó tenha vindo da região litorânea do país.
“Essa coisa de esconder a origem indígena é porque ninguém queria passar pelo preconceito. Naquele tempo da minha avó, ela sofreu muito. E para não sofrer, a gente deixa de ser o que é. Mas olha a minha pele. Eu já fui chamado de pardo, de branco, mas sou mais vermelho. Eu sou índio”.
Ele destaca que a parte do avô era mestiçada, entre negro e europeus – possivelmente portugueses. “Era bem misturado”.
Conforme comentou, nos tempos de escola, acabava contestando a história contada nos livros sobre a colonização do país.
“Eu respeito. Mas quando Pedro Alvares Cabral chegou, aqui tinha milhares de índios. O Brasil já era colonizado. Eles invadiram. Eu falava isso porque minha avó contava a história dos antepassados dela. Eles viveram essa imposição. Mas os livros não falavam”.
Para João Carlos, esse choque de culturas justifica o fato de muitas pessoas, com descendência indígena, renegarem a própria origem.
O ofício
Aos 55 anos de idade, João Carlos conta que sempre trabalhou em olaria, praticamente desde criança. “São José tinha muitas olarias. Famílias importantes tiveram olarias e até exportavam tijolos e telhas daqui. Mas isso foi acabando. Acho que agora só resta essa aqui e a do Saloti”.
A exemplo do que ocorre país afora, em que muitos direitos de trabalhadores sobretudo dos chamados ‘povos originários’ foram usurpados, o “João da Olaria”, como é conhecido – diz que os seus também não foram respeitados.
“Olha, praticamente, como se diz, minha família foi escrava, algumas vezes. A gente trabalhava pela comida e o lugar de morar. Eu trabalhei sem carteira assinada muitos anos. Assim também foi com meus pais, meus irmãos”, comenta.
“Trabalhei em um lugar, em olaria, onde diziam assim: olha, se chegar algum fiscal trabalhista, alguém da justiça, vocês se escondam no mato. A gente não sabia o que era exatamente, então muitas vezes se escondia. Só saía quando esse pessoal ia embora”.
Histórias de injustiças ele tem muitas. “Uma vez fui chamado no Fórum porque me acusaram de ter jogado lixo numa área de APP. Lá eu disse pra juíza que estavam me acusando de uma coisa que eu não fiz. Quase fui preso. Respondi da minha forma simples, do jeito que eu sou. A juíza disse que eu estava desrespeitando uma autoridade. Queriam que eu pagasse duas cestas básicas, mas eu disse não, porque se eu aceitasse estaria traindo a minha consciência. Eu não fiz e falei isso pra juíza. A minha advogada fez a doutora juíza entender isso”.
O trabalho de olaria, segundo ele, está com os dias contados, por diferentes razões, sendo uma delas a questão ambiental. “Além disso, esse tipo de tijolo não tem muita venda mais. Na hora de construir as pessoas preferem os tijolos de cimento, tipo blocão, tijolo baiano e também aquelas placas que colocam nas vigas”.
O tijolo que ele faz é o tipo maciço, o chamado tijolinho, que exige maior quantidade para, por exemplo, a construção de uma parede. “Isso aqui tá quase em extinção”, acredita. Quando não consegue recursos por meio da venda de tijolos, ele diz que faz bicos. “Ajudo a cuidar de pomar, plantar alguma coisa diferente e também trabalho com meu irmão, de servente de pedreiro. Vou me virando”.
Solteiro, ele brinca que, assim como o tijolo que produz, também está quase em extinção. “Pensei sim em casar, mas nesse mundo de dificuldade, a gente não pode deixar uma família passar necessidade, passar fome”.
A conversa se estende e a noite vai se aproximando. Dono de uma sabedoria ímpar, simplicidade típica de nossa gente e de uma fé robusta, João da Olaria explica que sua mãe, já falecida, cuidava da saúde da família com medicamentos caseiros. “E hoje dá medo de ir ao médico porque tem uns que erram no remédio”.
Leitor da Bíblia, diz que não segue religião alguma, mas tem uma fé inabalável. “Eu acredito na trindade: o Pai, o Filho, o Espírito Santo. E sigo dois ensinamentos importantes: ‘Amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a mim mesmo’. Isso não pode ser esquecido”.
De boa conversa, boas memórias e muitas histórias, João Carlos Moreira Lourenço faz parte de uma triste estatística de nosso país: a do apagamento da cultura ancestral. Com seu jeito simples, ele tem consciência de que não pode deixar de ser quem é, assim, assume suas raízes indígenas. Mesmo que a cidade não saiba, mesmo que os poderes não o vejam, ele existe: é um indígena rio-pardense.