O espelho partido
Sobrou o armário no velho quarto. Sobreviveu a todos. A porta nem mais abre direito, range em protesto, mas o espelho insiste. Está quebrado, seu vidro partido divide a imagem em duas metades que não se encontram, num salto de continuidade entre as linhas. Um cubista tardio.
Há manchas nos cantos. São as rugas do espelho, e os homens se sentem vingados pelas duras verdades um dia reveladas. Parece cansado de refletir os mesmos assuntos: as cores esmaeceram, seu azul é quase cinza, e o amarelo esqueceu como se faz.
O primeiro reflexo de um espelho é inexato. Leva tempo para ele aprender os contornos de um, o sorriso do outro; pouco a pouco, ele vai definindo a imagem. Com este não foi diferente. Sorte dos que viveram muito e puderam se ver retratados com precisão.
É mais antigo até que a mesa da sala. Ouviu com atenção as risadas, as discussões e, em especial, os silêncios. Duplicou três lustres diferentes e duas camas. Abateu oito besouros que voaram ao seu encontro, confundido com uma janela. Já refletiu um sorriso puro, as espinhas mais teimosas e levou dois murros de desespero. A tudo resistiu com dignidade.
Lembra-se do tio a dar os últimos retoques para ir ao baile, ajeitando os (já poucos) cabelos e a gravata. Do menino que fazia caretas para assustar a si mesmo. Da netinha que o lambeu para saber que gosto tinha. Da garota que ensaiava os gestos e palavras para um encontro. Das gotas de laquê que a mãe, ainda jovem, borrifava no cabelo, salpicando o vidro. Até do cachorro que latia para seu reflexo, ia procurar atrás do móvel o oponente, e voltava intrigado com a petulância do desconhecido que o imitava.
Mas isso faz tempo. Quando a luz falhava toda noite, e as velas e lamparinas nas gavetas viviam tensas, na expectativa de serem acionadas a qualquer momento.
A imagem que persistiu: a do tio a alisar o bigode enquanto, estarrecido, vislumbrava sua decadência. De quantos dos seus 80 anos fora testemunha?
No armário, ficavam as roupas e os travesseiros que evaporaram no tempo. Velhas varas de pescar nele se encostavam. Sapatos, botas de borracha e chinelos gastos na parte de baixo. E, dominando a maior parte da superfície, o espelho. Cansado, hoje passa quase todo o tempo dormindo, a sonhar que somos uma família de vampiros, que não exige mais dele reflexo algum.
Breve, os dois, armário e espelho, irão para o porão, se juntar a outros cacarecos e às caranguejeiras. Se todos se foram, vaidades e ilusões, risadas e rancores, é natural que eles também desapareçam. Talvez a madeira do armário seja reaproveitada: sirva de pasto para os cupins ou para as fogueiras nas noites frias, mas para o espelho não há esperança. Em todo caso, saberá guardar segredo.
Assim como não abre mais, a porta do armário também não fecha direito. Pela fresta estreita, me chegam vozes distantes, acontecimentos que insistem, e vejo naquele interior conhecido todo o escuro das luzes que se foram.
Espelho, espelho meu: existe alguém mais estranho do que eu?