Gazeta Do Rio Pardo

O Dia da Palavra

O Dia da Palavra

Em geral, é a primeira palavra que a gente diz. Se não é, logo assume o posto de mais importante.
Quando uma mulher ouve a palavra, será palavra para sempre. Ela será capaz de ouvi-la debaixo d’água, em outro país, no meio da torcida do Flamengo, em show de heavy metal, numa queima de fogos, até se o carro da pamonha parar em frente de casa. O ouvido da palavra escuta até dormindo.
Se o menino joga bola na rua, cai e rala o joelho, ele grita a palavra. Se a menina está resfriada, a palavra sai ainda mais anasalada do que já é. Quando eles dizem a palavra dobrando a sílaba, o coração dela parece manteiga deixada no sol.
Na filha que também dança, a palavra continua. Pelo filho que já namora, a palavra sente 70% de amor e 30% de ciúme. Na mordida na manga, os fiapos nos dentes pintam a palavra de amarelo ouro. Com uma tesoura nas mãos, a palavra apara as unhas muito rente, assim dói. No reflexo do espelho, mesmo que não esteja, ela ralha com a gente se nosso cabelo está ridiculamente comprido.
Toda vez que Roberto Carlos canta, as letras das músicas engasgam a palavra.
Quando a gente fica triste, a palavra costuma ficar mais triste que a gente. Quando desanima, quem nunca desiste é a palavra. Mesmo das nossas piadas sem graça, a palavra se chacoalha de tanto rir e às vezes faz xixi na calça.
O cheiro de mercúrio cromo lembra a palavra. Sabonete cheira à palavra. Mexidinho de ovo com tomate, um bolero, todas as toalhas macias do mundo. Todo bolo de aniversário vem recheado da palavra.
De vez em quando, acontece de a gente ficar com raiva da palavra e brigar com ela. Dizer coisas duras e bater a porta do quarto, fazendo tremer casa e coração. Mas tem que ficar muito no de vez em quando.
Dentro da palavra cabe tanto, que até do filho de outra palavra ela cuida. Tem muito de deus, o coração da palavra. Tem até palavra solteira, que luta sozinha porque assim decidiu e pronto, contra tudo e contra todos – palavra de palavra.
Deve ter um buraco naquele colo, de uma fundura que nunca enche, não tem limite em caber o que a gente precisa, no instante preciso.
Quando a palavra fica velha, é a filha que vira palavra, novinha em folha. Assim, feito quando o brinquedo que a gente mais gosta quebra, e alguém dá outro igual pra gente, renovado, num embrulho tão bonito que só ele vale o presente.
Como pode ser tão pequena, só três letras, e, no entanto, infinita? Como pode, ela sempre estar, mesmo quando não está mais? Ser doce, e nunca enjoar?
Domingo é o Dia da Palavra. Ela vai ouvir outras palavras bonitas, receber presente, ligação de filho que está longe, vão apertar a palavra nos braços até espremer lágrima, e melar sua bochecha de beijos bem espumados – a palavra não liga. Palavra, só tem uma.
Então a gente puxa do peito, faz subir até a boca e desengole a palavra, numa nuvenzinha toda branca onde o amor voa dando cambalhota.