Gazeta Do Rio Pardo

Maria cortou o cabelo

O barulho da chave interrompeu o parágrafo, a porta de casa abriu, ergui a cabeça do livro e – catapimba – dei com Maria criança. Passado o susto bom (que não são só os ruins que acontecem nesta vida), entendi: Maria havia cortado o cabelo. Curto como quando era pequena. Levou um tempo até que eu entendesse.

O engano durou o quanto leva para uma boca se escancarar. O tempo de contar histórias para Maria dormir. De dar uns tapinhas nas costas para fazê-la arrotar depois da mamada. Agarrei-a bem no colo e saltei as ondas do mar, as risadas mais altas que as ondas quebrando. Pude vê-la pequenina e atrevida se arriscando a andar. Ia dos braços de Beatriz para os meus, confiante. Passou fácil pelo tapete em que um dia, correndo, iria tropeçar e abrir a testa no armário. Quando chegou a mim, dei esse mesmo abraço no corpo que virou de mulher e hoje é maior do que o meu.

Esse cabelo curto, que ela escovava cheia de poses, como se fosse a Pequena Sereia. Parava o que fazia e ia correndo em frente à TV, dançar com a Branca de Neve. E esse sorriso, que tão poucas vezes saiu do seu rosto (obrigado, vida, fiz o possível para que nunca saísse). Lá está a menina, parada junto à porta, esperando o veredito e se divertindo com meu ar apatetado. Ficou lindo, digo ou tento dizer. Ela descrê, demorei na resposta. Seu pai é vagaroso, minha filha. Ou ele insiste em tentar que as coisas lindas durem um tantinho mais.  

De diferente, não há a franja. Mas lá estão os mesmos olhos curiosos, que continuam a procurar no ar uma maravilha qualquer. Olhos que se levantam como os pés do chão na sua dança sem fim. E há as sobrancelhas, joelhos, testa, tudo que nela compõe lindeza.

Deus, eu faço qualquer coisa, dou minha estante de livros para o primeiro na rua, nunca mais ouço Mozart, viro abstêmio inveterado ou dou um fim nos meus tênis sujos de tão gastos, mas providencie amores bons para ela. Que sejam gentis e verdadeiros. E que a façam sofrer apenas o necessário para que se torne uma mulher ainda mais forte.

Maria corre para o quarto, para se ver no espelho. Atrás dela, na porta, surge Beatriz. Trocamos um olhar emocionado e constatamos que nossa menina voltou e não voltou, nunca foi, mas está de saída. E nos abraçamos forte, pois de um abraço nosso começou a nascer Maria. Tudo isso se passou em cinco segundos, talvez menos. Sustos, como sonhos, duram menos do que parecem. Mas por um instante voltei a ser o bobo encantado, que nunca me esforcei para deixar de ser. O livro fica para outro dia, empaquei no parágrafo que a vida escreveu e dele não pretendo sair tão cedo. Ou nunca mais.