Lancaster
Lancaster era o nome de um perfume muito vendido ali pelos anos 70. Havia a linha original, argentina, de qualidade superior, mas dessa eu nada sei. Conheço a versão brazuca, bem popular e de preço acessível, encontrada em farmácias e até em supermercados, o que não era (e ainda não é) exatamente um aval de qualidade. Sumiu do mapa, como tanta coisa de lá pra cá. Não se acha em lugar algum.
Opa. Não se acha, vírgula: está bem aqui na minha frente, no armário do banheiro. Intacto. Foi o primeiro presente que comprei para meu pai, tão logo recebi o primeiro salário no meu primeiro emprego. Deve ter custado uma fortuna para um iniciante que ganhava pouco mais de um salário mínimo. Eu era revisor numa editora e corrigia os verbetes de uma enciclopédia.
Ganhava pouco, mas me divertia: o diretor instituiu a peculiar regra de traduzir para o português o primeiro nome das personalidades citadas. Assim, fui apresentado a Ludovico Beethoven, Guilherme Shakeaspeare, João Lennon, Carlos Marx, Paulo Picasso. Não podia ir pra frente: a editora, como o Lancaster, é hoje apenas um verbete do passado.
Em vez de abrir e usar o perfume (que, vamos ser honestos, estava longe de ser um Chanel), meu pai resolveu guardar como um troféu valioso. Assim o achamos, tal como o comprei, quando eu, minha mãe e meus irmãos fomos arrumar e dividir as coisas do pai, depois que ele se foi.
O tempo escureceu o líquido e amarelou o rótulo, que já não era chegado numa modernidade. O conteúdo, originalmente de 90ml, evaporou um bom tanto. Talvez, tenha perdido todo o álcool e sobrado somente uma indesejada doçura – péssima para os perfumes, complacente com as memórias.
Algumas vezes me vem a tentação de abri-lo, mas nunca o fiz. Temo que assim esteja abrindo uma caixa de Pandora, que vai ressuscitar o Centro de São Paulo, a Barraca do Gustavo em Itanhaém, Elizeth Cardoso, as moitas de sensitivas da Fazenda Fartura, os Opalas de quatro portas e o nosso melhor futebol. E essa possibilidade, não que dê medo, mas é demais, não dou conta.
Em todo caso, tento abrir a tampa com minha força espantosa, que empolgou gerações. Tento uma, duas, cinco vezes. Não consigo, ela emperrou (será que açucarou, como as tampas irredutíveis dos potes de geleia?) Deixe estar, talvez seja melhor assim. Devolvo o velho Lancaster ao armário do banheiro, como uma preciosidade que a gente guarda na estante. É um lugar inglório, bem sei, entre um aparelho de barbear já sem corte e o fio dental. Mas é um canto seguro para que ele guarde sua história e sobreviva, quem sabe, até a mim. Não consegui abrir. Não senti o perfume (ruim). Mas, de uma certa maneira, estou impregnado.
Cássio Zanatta